Atualmente, a pergunta na cabeça de todos em isolamento social é: “Quando será que tudo voltará ao normal?” A reflexão do texto de hoje é pautada sobre essa questão: sobre o “quando” da normalização e, talvez mais importante, “o que” a normalização significará.
É comum sentir saudade da nossa rotina, da vida “normal”. Ter vontade de que, quando acabar a quarentena, possamos voltar a fazer tudo o que fazíamos antes. Não é tão comum, talvez, refletir sobre as implicações de longo prazo: é provável que nada vá ser “normal” como era antigamente.
Importante esclarecer que não estamos falando de futurologia, e não nos julgamos experts em tendências, porém consideramos que já há sinais suficientes para certas conclusões e, principalmente, acreditamos que é importante refletir sobre a ansiedade que se sente sobre a prospecção de uma vida “normal” para qual gostaríamos de voltar.
O que pessoalmente esperamos, para o mundo d.C. (depois do coronavírus), é a marca de um certo amadurecimento, um crescimento para a humanidade e uma mudança importante para o mundo.
Nós gostaríamos de ver esse crescimento. Porém, assim como aconteceu com Cristo, cuja igreja foi fundada cerca de três séculos depois de sua morte, não dá para dizer se vamos aprender as lições que essa experiência tem para nos ensinar de uma só vez.
Uma coisa é certa. Essa pandemia de COVID-19 marca o nosso tempo. Marca uma época. Assim como grandes historiadores, como Eric Hobsbawm, que afirmam que o século XX é demarcado por um período que vai de meados da década de 1910 até a queda do muro de Berlim, pensamos junto com o historiador Jérôme Baschet que o século XXI começa agora.
Talvez o novo coronavírus marque o início de uma nova era da humanidade. A maneira na qual esta era vai se desenrolar dependerá muito do que fizermos deste ponto em diante. Mas antes de falar sobre os possíveis cenários para um futuro mais distante, é importante pensar em um cenário mais próximo de nós; sobre quando tudo isso vai acabar.
Talvez esta seja uma informação desconcertante, um tanto dura, porém necessária: esse “quando” não existe. Não há uma data. Não dá para ficarmos imaginando, como muitos têm imaginado, que acaba quando acabar a quarentena, seja isso daqui a 10 dias ou 1 mês. A palavra chave para esse “quando”, para esse “depois”, é processo.
Processo é um acontecimento contínuo, que não necessariamente tem datas, marcos fixos, rígidos; começa aos poucos e desaparece aos poucos. Pensar o futuro como um longo processo de adaptação e aprendizado pode ser muito, muito útil para nos prepararmos e pensarmos quais providências – e quais aprendizados – podemos tirar dessa crise toda.
É a diferença entre esperar um dia específico para “retomar tudo” e começar a imaginar o processo: ainda que termine a quarentena, teremos um longo período de muita cautela com, por exemplo, uso de máscaras em transportes públicos, proibição de aglomerações, cinema ou festas. Estas são apenas algumas das possibilidades.
É muito provável que a nossa sociabilidade seja ainda afetada por muito mais tempo do que o tempo da quarentena mais rigorosa. Não saberemos quando vai ser possível voltarmos a nos relacionar normalmente, sem risco de nos contaminarmos.
Sem falar no fantasma da reincidência da pandemia. Ela pode diminuir, quase desaparecer, mas enquanto não tivermos uma vacina eficaz sempre vai ficar aquele receio de uma nova mutação do vírus, nova quarentena, novas vítimas.
É neste sentido que a ideia de processo entra em evidência. O primeiro processo que estamos apontando é o processo de retomada das relações. Ainda que seja longo e limitado, conta também com alguns ganhos deste momento, como o uso das tecnologias para encontros com amigos que estão afastados. Esta conexão por meio da tecnologia deve seguir como uma tendência, pelo menos por um tempo.
O segundo processo é a questão da dor, do trauma. Muitas pessoas terão que lidar com os lutos mal elaborados e com o sofrimento da perda sem uma despedida apropriada.
Nesse sentido, destacamos os profissionais de saúde, que também serão fortemente afetados pela pandemia. São heróis-vítimas de um sistema precarizado pois, quando escolheram seguir essa carreira, não o fizeram pensando que teriam de decidir quem vai morrer – ou seja, quem tem direito ao respirador e quem não tem – mas tomaram essa decisão pensando que poderiam salvar vidas e ajudar as pessoas de alguma forma.
A Europa, na primeira metade do século XX, após as Guerras Mundiais, testemunhou o grande silêncio dos soldados que voltavam dos campos de batalha e não conseguiam falar sobre seus traumas. Isso era um pouco do que Walter Benjamin chamou de experiência de pobreza. Uma reação subjetiva, mental, causada por esses eventos que nos levam ao afastamento do nosso patrimônio humano.
O terceiro processo, uma possibilidade positiva, se concentra nas muitas ações de solidariedade e compaixão que estão sendo tomadas por diversos setores da sociedade. Muitas pessoas que antes disso tudo eram adversárias, voltaram a conversar para pensar no bem comum. É isso que faz uma nação, o diálogo e a construção de coisas que servem a todos.
Com a necessidade de sermos solidários e compassivos nesta situação adversa, será que depois de uma experiência que requer uma saída coletiva como essa do coronavírus, seremos ainda tão individualistas?
Talvez a história da influencer que fez uma festa em plena quarentena, com vários convidados - e que por isso perdeu uma série de parcerias com empresas - seja um sinal de que o pensamento individualista e egoísta esteja perdendo espaço para o pensamento solidário e empático.
O filósofo Vladimir Safatle fala da solidariedade como uma alternativa: “Tais alternativas passam pela consolidação de uma solidariedade genérica que nos faz nos sentir em um sistema de mútua dependência e apoio, no qual a minha vida depende da vida daqueles que sequer fazem parte do “meu grupo”, que estão no “meu lugar”, que tem as “minhas propriedades”. Esta solidariedade que se constrói nos momentos mais dramáticos lembra aos sujeitos que eles participam de um destino comum e devem se sustentar coletivamente”.
Outro processo relevante para a observação, dado nosso contexto, é a transformação da expressão artística, como vimos a partir do final da década de 1950 e ao longo da década de 1960.
Depois da morte e da destruição experienciadas ao longo dos períodos das grandes guerras, o que observamos foi uma arte voltada para a vida, para o amor. Surge o iê-iê-iê dos Beatles, a Bossa Nova e a Jovem Guarda.
Existem algumas manifestações artísticas que já estão acontecendo, como as produções de Isabel Vaz, Mônica Salmaso, Guinga, Gil; que nos ajudam na reconexão com a vida e com a simplicidade revigorante das relações.
Seria muito positivo se essas coisas boas se realizassem mesmo. Mas sabemos que o ser humano tem uma grande dificuldade em aprender a partir de sua experiência. A psicanálise mostra isso, sobretudo a partir dos trabalhos de Bion. Precisamos superar muitas dificuldades e obstáculos para conseguir aprender a partir da nossa experiência.
É preciso ser capaz de manter um bom nível de calma e equilíbrio mental e alcançar um certo amadurecimento psíquico para aprendermos de fato. Se não for dessa maneira, nosso esforço constitui apenas tentativa e erro, e isso não é aprendizado, é adaptação.
Essa reação de adaptação se mostra presente, por exemplo, quando esperamos alguém nos informar de que se não usarmos máscara, tomaremos multa. Somente depois de tomar uma multa é que nos adaptamos e passamos a usar a máscara.
O aprendizado acontece quando conseguimos entrar em contato com a realidade – no caso, a dura realidade que o vírus impõe ao mostrar que somos (todos) vulneráveis. Então, percebemos que não somos indestrutíveis, e passamos a usar a máscara porque todas as vidas são importantes, a nossa e a do outro.
Como já citamos em um episódio de nosso canal - no terceiro episódio sobre depressão, falando sobre o capitalismo melancólico - o futuro anunciado para nós era pior do que a vida que nossos pais tiveram.
Em meio à pandemia, sentimos como se esse futuro tivesse chegado. Até porque ainda se mantêm todos os outros desafios que nos aguardam e que não configuram um cenário bonito de se ver: aquecimento global, crise financeira e ritmo de crescimento econômico insustentável, decomposição social e precarização da vida e das condições de trabalho.
Como diz o historiador Jéromê Baschet, "o que o vírus e o futuro colocam como questão é a nossa responsabilidade." Será que quando tudo isso passar ainda estaremos nos curvando à tirania do imediato? Ou passaremos a levar em consideração os efeitos de nossas ações?
Será que veremos a importância da valorização dos sistemas de saúde e de educação, que devem ser vistos não como gastos, mas como investimentos? Passaremos a valorizar mais os profissionais de saúde e os professores do que os famosos? Continuaremos ostentando o consumo, a quantidade, o ter, ou passaremos a valorizar mais o conteúdo, o caráter, o ser?
Torcemos, e trabalhamos para isso, para que essa mudança realmente aconteça. Porque, pensando na pergunta que iniciou a nossa reflexão: “Quando é que tudo voltará ao normal?” Se tudo voltar a ser como era antes, será sinal de que não teremos aprendido nada.
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