Afinal, o que é Ciência?

20 Junho 2022

Diante do isolamento social para combate ao coronavírus, observamos hoje o surgimento de discordâncias, muitas vezes sob o mesmo teto, com relação à eficácia ou mesmo à necessidade de se manter em casa como medida de proteção.

Quando vemos alguém querido se expondo ao vírus, podemos sentir medo, raiva, tentar conversar, dialogar. Porém, na maioria das vezes, a pessoa ainda continua saindo de casa. Este é apenas um caso de estresse e desgaste das relações, entre tantos outros que nos afligem no dia-a-dia durante essa pandemia.

Existem, no cenário sociopolítico atual, de um lado, pessoas que estão atentas às evidências científicas sobre o coronavírus e, de outro lado, pessoas que duvidam que a ciência seja a forma mais objetiva para lidarmos com essa ameaça invisível.

A polarização que vivemos no país há muito tempo leva o trabalho de combate ao novo coronavírus, que deveria ser pautado pela Ciência, para o campo dos discursos e disputas ideológicas.

A realidade não vai deixar de ser dura com todos nós, por mais que duvidem da Ciência. O vírus é uma realidade. Talvez a realidade mais dura que o nosso tempo já testemunhou.

A Ciência exerce um papel especial para nossa sociedade pois é aplicada para a produção de bens que todos consideram importante hoje em dia: carros, remédios, telefone celular, motos, aviões, internet, energia elétrica, a construção de prédios, pontes, combustíveis, cosméticos, produtos de limpeza da casa. Até mesmo na comida que comemos, na água que bebemos e com a qual tomamos banho, tem muita Ciência aplicada.

Mas por qual razão, mesmo assim, existem muitas pessoas que questionam e duvidam da Ciência? Por que há tantas pessoas levando a discussão sobre o coronavírus para longe do campo da Ciência?

É claro que estão presentes diversos interesses nesta situação. Uma das questões que enfrentamos é a dificuldade compreensão da Ciência, e o que ela representa. Do mesmo jeito que entendemos de futebol, medicina, política, etc., julgamos entender o que é Ciência.

Esse pré conceito sobre a Ciência se mantém em algum lugar da nossa cabeça. Uma mistura da aula de Ciências do colégio, à imagem de um laboratório, com um cientista vestindo um jaleco branco.

No entanto não inclui coisas essenciais, como: a epistemologia, a metodologia científica, a comunidade científica, a história da Ciência, citando apenas as questões mais importantes.

Porque Ciência não é o que no geral pensamos. Algumas das concepções que temos sobre a Ciência e que não são verdadeiras incluem: a Ciência descobre a verdade sobre as coisas; a Ciência comprova nossas percepções, a nossa experiência e; a Ciência é intuitiva - se somos capazes de pensamento, somos capazes de entender o que é Ciência.

Essa “mitologia” da Ciência, e as concepções errôneas construídas sob estes alicerces, são motivo de frustração em muitos. Essa frustração afasta as pessoas do interesse pelo conhecimento científico.

Para derrubar esses mitos, partiremos de uma obra fundamental do Gaston Bachelard, um livro chamado “A formação do espírito científico”.

Bachelard foi um filósofo que não teve uma vida fácil e só conseguiu começar a estudar filosofia aos 35 anos. Mas sua contribuição para a compreensão da Ciência é fundamental. Ele é reconhecido como um dos maiores epistemólogos da história.

Primeiro mito: a Ciência descobre a verdade sobre as coisas. Não faz sentido dizer que algo é uma verdade científica. Porque a Ciência não busca a verdade. A verdade é uma noção que contradiz todo o propósito por trás da ideia de que a ciência é um conhecimento em desenvolvimento constante, eterno.

Se a Ciência alcançasse a verdade, isso significaria que ela teria chegado ao seu limite de desenvolvimento, afinal de contas, não teríamos mais nada para criar e descobrir depois da verdade, não é mesmo?

Bachelard diz que “Já foi dito muitas vezes que uma hipótese científica que não esbarra em nenhuma contradição tem tudo para ser uma hipótese inútil”. Assim, a verdade é uma noção que pertence aos campos político, moral, religioso, do senso comum, dos saberes do dia-a-dia. Não é uma noção que cabe no domínio da Ciência.

(Fonte)

O que não quer dizer que o desenvolvimento científico não produza efeitos na realidade, e é aí que surge a confusão. Justamente porque ela tem efeitos na realidade é que sentimos como se fosse verdade. Por exemplo: as pesquisas sobre o novo coronavírus podem produzir uma vacina que ajuda a nos tornar imunes à doença.

A Ciência ordena e descreve a realidade, a nossa experiência imediata. Mas em seu estágio mais avançado, a Ciência cria a realidade. Podemos até dizer que a Ciência não vai descobrir a vacina contra o coronavírus. Isso porque não existe uma vacina escondida para ser descoberta. O que a Ciência vai fazer é inventar uma vacina.

O que faz da Ciência um conhecimento tão especial é que essa invenção não é uma invenção que sai da cabeça de qualquer um, ela depende de muitas pessoas trabalhando sistematicamente, precisa ter um corpo, um grupo de pesquisadores pensando e colaborando com pesquisas que vão se somando.

Para a Ciência criar a vacina, são necessárias técnicas e tecnologias muito sofisticadas, algo que não se encontra facilmente. Além disso tudo, precisa de método e testagem.

O termo “isso é comprovado cientificamente” é utilizado frequentemente para dizer que aquele fato constitui uma verdade. Esta expressão, “comprovado cientificamente”, atesta apenas que até o presente momento aquela hipótese está comprovada, porém como disse Bachelard, toda comprovação científica pode cair.

Segundo mito: a Ciência comprova nossas percepções, a nossa experiência. O segundo engano que cometemos é o de que a Ciência serve para comprovar as nossas percepções. Mas geralmente, o contrário é verdade. A experiência científica contradiz a nossa experiência comum. Na maior parte dos casos, ela não confirma as nossas percepções imediatas.

Um exemplo dessa percepção imediata pode ser observado em uma frase que tem se ouvido muito: “Eu não conheço ninguém que tenha coronavírus, então eu posso sair na rua”.

Essa frase demonstra uma dificuldade do falante de aceitar algo que vai contra a sua percepção. Se analisarmos a luta contra o coronavírus por países, encontramos o exemplo da Alemanha e de Portugal que, mesmo com a percepção de que tudo estava bem, que era permitido sair na rua, escolheram o isolamento e foram super bem sucedidos.

O número de mortos na Alemanha neste momento, no país inteiro, é menor do que o número de mortos só em Nova Iorque. E de outro lado temos a Suécia e o Japão, que seguiram a percepção de que estava tudo bem, viveram um estado de calamidade.

Se assim fosse, se a Ciência fosse uma confirmação de nossa percepção imediata, ela não seria mais do que uma forma de expressão do óbvio.

Temos o costume de acreditar naquilo que vemos ou ouvimos e que confirma uma crença preexistente. Deste modo, se há alguém em nosso ciclo de amigos que possui um discurso semelhante, passamos a acreditar e defender aquilo como se fosse uma verdade absoluta.

Neste sentido, a Ciência é anti-perceptiva, anti-intuitiva e anti-valorativa. Ela rompe com as nossas percepções, com as nossas intuições e não pode ser submetida aos valores pessoais e culturais, sob o risco de se tornar uma pesquisa preconceituosa – algo que deve ficar fora do campo da Ciência.

E o terceiro mito: a Ciência é intuitiva; se somos capazes de pensar, somos capazes de entendê-la. Nosso pensamento pode tomar muitas formas. Ele pode seguir vários caminhos para explicar as coisas, o mundo, o que está acontecendo.

Podemos desenvolver um exemplo a partir da imagem do homem das cavernas. Não havia disponível para ele, informação sobre fenômeno algum. Ele não sabia se quando o sol se pusesse hoje, ele ia nascer amanhã. Cada dia podia ser o fim do mundo. Imagine o pavor que ele deveria sentir todo final de tarde.

Algumas das primeiras formas que o pensamento encontrou para acalmar as pessoas que não sabiam se o sol nasceria no dia seguinte foram o pensamento animista, o pensamento mágico-religioso. Em um dado momento, as pessoas passam a se acalmar e sofrer menos depois que se estabelece uma história em que o sol é um deus, que na chegada da noite sai para uma batalha e volta no dia seguinte; ou que ele é o espírito de um antepassado que precisa dormir e de dia nos protege, por exemplo.

Já entender o movimento dos planetas e a relação que isso tem com o nascer e o pôr-do-sol nos traz muito mais tranquilidade. Mas é muito mais difícil construir esse conhecimento.

A existência do pensamento científico não elimina a forma de pensar dos antigos. Todos eles convivem na nossa cabeça até hoje. Para piorar, o pensamento científico é antinatural, é muito mais fácil que, na nossa mente, encontremos justificativas para as coisas baseadas em modelos de pensamento mais fáceis, mais simples, do que na Ciência.

Para se chegar no pensamento científico mesmo, será preciso separar dele todos os outros tipos de pensamento que convivem no nosso universo interno. Por exemplo, quando você pensa que não pode deixar o chinelo virado para baixo, porque se não, como consequência, sua mãe irá morrer: pensamento mágico. Ou então um pensamento animista, como pensar que um animal de estimação está usando linguagem humana por reproduzir um som que se assemelha com alguma palavra que conhecemos.

Fora os outros pensamentos que estão todos juntos na nossa cabeça, há também o pensamento ideológico, os pensamentos pseudo-científicos, recheados de argumentos de autoridade, “modelos” e uma “metodologia inovadora” para explicar a vida. Tudo isso, para a identificação do pensamento científico, terá que ser deixado de fora.

(Fonte)

Estes são o que Bachelard chama de obstáculos epistemológicos.

Obstáculos epistemológicos são dificuldades que nós, seres humanos, temos naturalmente para desenvolvermos o pensamento objetivo. Eles acontecem por conta da forma como a nossa mente se organiza, da forma como os nossos órgãos responsáveis pelos sentidos percebem o mundo e da forma como a nossa cognição processa as informações sensoriais. É preciso superar esses obstáculos se quisermos alcançar o conhecimento científico.

É neste ponto que chegamos na importância da epistemologia. A epistemologia é uma palavra que vem do grego epistémé, que quer dizer Ciência, mais logie, que significa estudo. A epistemologia é a parte da filosofia que estuda o próprio conhecimento. É como se fosse um conhecimento básico que nos ajuda a descobrir quais saberes podem ser considerados científicos e quais não podem. Exerce o papel de separar o que é conhecimento científico e o que é saber comum.

Sem sabermos da existência da epistemologia, ficamos sem critério para saber o que fazer quando surge uma pandemia. "A quem ouvimos, quem seguimos? Quem respeitamos? A quem damos aplauso, e a quem questionamos?".

Quando se estuda epistemologia, aprendemos a distinguir, no que nos é apresentado, nas informações que chegam até nós, o que tem fundamento e o que são fake news.

E para terminar, é importante enfatizar que Ciência não tem partido. A ideia do trabalho e do desenvolvimento científico pressupõe neutralidade ideológica e partidária.

Claro que grupos políticos podem usar a Ciência para tentar justificar suas ideologias. Porém eles utilizam também uma infinidade de outras coisas: Ciência, religião, pátria, a cultura, para servir de argumento para ganhar votos e seguidores.

E claro, também, que os cientistas, que são pessoas como eu e você, também podem ter suas preferências políticas, religiosas e ideológicas. É por isso que a pesquisa científica é supervisionada por uma comunidade e submetida a um comitê de ética.

Isso acontece justamente para evitar que um suposto cientista desenvolva uma pesquisa com propósitos tendenciosos ou com uma inclinação ideológica qualquer. As pesquisas precisam ser submetidas a um comitê de ética que avalia a validade do projeto de pesquisa antes de dar o aval para a execução do estudo.

Esperamos que este texto o ajude a pensar sobre o que está se passando e tirar as suas próprias conclusões quando os profissionais da saúde dizem que precisamos lidar com o coronavírus com base na Ciência.

O que está em jogo não é apenas a diferença entre a vida ou a morte de uma pessoa. Ou a vida e a morte de pessoas amadas. O vírus é real e não vai respeitar ninguém porque escolheu uma religião ou outra. Ou porque votou em um candidato ou outro.

O mais importante para nós aqui do Relações Simplificadas é você se cuidar e continuar vivo e com saúde. E neste momento, a Ciência é nossa melhor amiga.

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